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O caso Cacau Show e os limites no mundo corporativo

Quais os limites do ambiente corporativo? No ano de 2014, a rede Habib's foi investigada por suposto esquema de sonegação fiscal em que os franqueados tinham que passar por um treinamento onde conheciam o caminho para alcançar 'alta rentabilidade'. "A rede garantia os 20% de rentabilidade desde que você também sonegasse", denunciou um ex-franqueado, à época.

Mais recentemente, em abril de 2025, o empresário Luciano Hang, dono da varejista Havan, foi condenado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região a indenizar uma funcionária por assédio eleitoral nas eleições para presidente de 2022. 

Agora, a Cacau Show, a maior rede de chocolaterias e uma das marcas mais populares e queridas do Brasil, entrou no centro de uma crise sem precedentes ao virem à tona denúncias de franqueados e funcionários sobre práticas abusivas, como pressão por metas, acúmulo de dívidas, bloqueio de fornecimento e cláusulas que dificultam a saída, no caso dos primeiros. 

Esses e outros problemas que afetaram a delicada relação franqueador-franqueado já haviam sido relatados pelo Diário do Comércio em 2016, não só na Cacau Show, mas em outras empresas também, e foram alvo até de audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo. 

A novidade agora são as denúncias da equipe interna da rede de chocolaterias, que incluem assédio moral, homofobia, gordofobia e até a obrigatoriedade de participar de "rituais" corporativos considerados constrangedores, comandados pelo CEO Alexandre Costa, que incluíam fazer tatuagens com a palavra Atitude, como a que o próprio CEO ostenta, de acordo com os relatos divulgados em perfis de redes sociais, como o "Doce Amargura." 

Diante desse cenário, a pergunta sobre o que pode e o que não pode no ambiente corporativo volta à cena, e por isso vale a orientação de especialistas para o empreendedor das franquias, os revendedores ou mesmo os funcionários entenderem até onde vão esses limites.

Para evitar perdas e danos

Os franqueados hoje são a força motriz da Cacau Show para a expansão da rede. Mas, para evitar problemas como os relatados no início da reportagem, Lucas Gabriel dos Santos, advogado do Eichenberg, Lobato, Abreu & Advogados Associados, especializado em contencioso cível, explica que na relação empresarial, cuja sofisticação das partes é presumida, os contratos têm pouca ou nenhuma flexibilização. 

Ele lembra que o franqueador quase sempre impõe as condições da franquia, mas a legislação oferece alguns 'remédios' ao franqueado, como a Circular de Oferta de Franquia (COF), que deve conter, de forma clara, as informações essenciais para operar a marca. Porém, quaisquer elementos novos e prejudiciais podem ser compreendidos como descumprimento contratual por parte do franqueador. "Caso esse descumprimento seja reconhecido judicialmente, pode ensejar indenização por perdas e danos ou até mesmo rescisão do contrato", afirma.

Por isso, a melhor alternativa é sempre negociar bem o contrato de franquia antes, diz Paulo Bardella Caparelli, sócio do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados, mestre em Direito Societário e especialista em M&A, Contratos e Franquias.

Isso vale também para aqueles modelos de franquia que se mostram inflexíveis, pois, segundo ele, é um "belíssimo indicativo" de como será o relacionamento ao longo do cumprimento do contrato, assim como buscar orientação prévia de profissionais especializados. 

"O franqueado é um empresário que sempre alcança mais sucesso se bem assessorado, mas muitos entram em projetos sem a clareza dos riscos assumidos e são prejudicados por falta de orientação, ou crença em promessas não escritas no contrato de franquia e COF." 

No âmbito da gestão, já que a expansão da marca foi confiada a eles, é preciso consciência da importância estratégica desses stakeholders, muitas vezes negligenciados, afirma Bianca Dramali, professora do curso de Administração de Empresas da ESPM, que reforça que os franqueados têm sim de acionar meios legais para defender seus direitos, em casos assim. 

Isso porque há uma relação de codependência, de cocriação de valor, pois a marca não seria do tamanho que é sem a rede de franqueados, e à medida que as experiências negativas vão reverberando, a marca pode ser colocada em xeque afetando a todos, destaca. 

"A Americanas (na época do rombo milionário) fazia posts aos consumidores dizendo 'entre nós e vocês nada mudou'. Mas não só estes devem ser ligados à gestão de experiência: têm de estar na pauta da gestão e de relacionamento de todos os stakeholders da companhia."

Benefícios flexíveis

Uma empresa pode obrigar funcionários a agirem de determinada forma a título de 'engajamento', como fez a Havan, ou 'motivação', segundo as denúncias sobre a Cacau Show? Segundo Lucas Gabriel, da Eichenberg Advogados, aqui o limite do ambiente corporativo é o que foi pactuado pelas partes, seja contrato de trabalho, prestação de serviços ou franquia. 

Ou seja, tudo o que ultrapassar a natureza da contratação e suas obrigações (como exigir o comparecimento em eventos, ou comportamento específico) é excessivo e deve ser analisado à luz dos direitos fundamentais do funcionário. "Essas atividades não podem ser exigidas pelo empregador, especialmente se expuserem ao constrangimento ou causarem desconforto."

Bianca Dramali, da ESPM, fala que, nesse âmbito, os limites residem na coação, pois nenhum funcionário pode ser obrigado a algo, e sim convidado ou até influenciado. Mas esse limite também chega ao risco de punição e envolvimento por ele também ser um cidadão. 

"Se vir alguma coisa muito errada, que pode prejudicar outros stakeholders, ele tem outros papéis sociais além deste de funcionário, de denunciar, de avisar o poder público, a opinião pública, do que está acontecendo - como na questão da sonegação de impostos do Habib's", lembra.  

Assim como há boas práticas para gravação de imagens, poderia também existir consentimento para participação em uma atividade, diz Bianca. "Seguindo a tendência de benefícios flexíveis, também é possível existir algo na linha de experiências de engajamento, de motivação, para a empresa atingir objetivos e os funcionários se sentirem respeitados em suas individualidades."

Reforçando que as empresas podem, e muitas vezes devem, criar ações para motivar seus funcionários e fortalecer a cultura da organização, o especialista em Direito Processual e do Trabalho, Marcel Zangiácomo, também do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados, afirma que existe um limite para isso: o respeito aos direitos e à liberdade de cada pessoa.

"Quando uma empresa impõe que todos participem de um 'ritual', façam tatuagens, se posicionem politicamente ou sigam certos comportamentos para 'mostrar engajamento', ela pode estar excedendo seus poderes como empregadora."

Ele continua dizendo que casos como o da Cacau Show e das demais empresas citadas mostram como essas práticas podem ultrapassar o bom senso e chegar a ferir a dignidade do trabalhador — algo protegido pela Constituição. 

"Ninguém pode ser forçado a participar de algo com o qual não concorda só por trabalhar em uma empresa. O papel do empregador é inspirar, não obrigar. Quando isso não é respeitado, pode ter consequências legais, como ações por assédio moral ou danos à imagem da empresa, além de fiscalização e autuações pelo Ministério Público."

Cuidado com a reputação

O franqueador e o funcionário são protegidos pela legislação por serem a parte mais fraca da relação empresarial, mas obviamente têm que seguir regras para evitar problemas. Por outro lado, além de não agir de má-fé, o empresário, o franqueador, também precisa seguir algumas diretrizes para evitar sanções ou até judicializações por condutas consideradas inadequadas. 

Em primeiro lugar, diz Lucas Gabriel, da Eichenberg Advogados, o franqueador deve cumprir rigorosamente todas as obrigações previstas na COF e no contrato de franquia. Além disso, deve atuar com máxima transparência, especialmente na necessidade de alterar qualquer cláusula, comunicando os franqueados claramente, em prazo razoável e documentando tudo.

"Da mesma forma, recomenda-se implementar uma política de compliance robusta, com canal de denúncia interna para que problemas sejam apurados de forma confidencial, evitando exposições públicas que prejudiquem a empresa", orienta. 

Manter um canal de denúncias ativo, e não apenas nos "documentos de marketing", segundo o advogado Paulo Caparelli, do escritório Galvão Villani, inclui a análise detalhada de cada denúncia e, principalmente, o endereçamento de cada uma.

"A alta administração precisa estar atenta para as denúncias recebidas e disposta a mudar os processos internos, evitando que os problemas sejam encobertos pelo baixo escalão." 

Para a professora Bianca Dramali, da ESPM, ações de motivação, engajamento e denúncia, assim como as pensadas para o consumidor, também devem ser pensadas para franqueados e funcionários, pois estes também querem participar das soluções e da construção da marca.  

E, antes de mais nada, é preciso criar um espaço de segurança psicológica: sem abertura para dar ideias ou fazer reclamações e críticas de forma natural, elas podem vazar para o mercado, alerta. "E as consequências podem ser muito maiores, com uma ação corretiva muito mais cara, muito mais demorada, e que pode comprometer a reputação da marca por muito tempo."

O que diz o setor (e a Cacau Show)

Em 2024, a Cacau Show ocupou, pela terceira vez consecutiva, o topo do ranking das maiores franquias do Brasil em número de unidades, de acordo com o ranking da Associação Brasileira de Franchising (ABF), quando alcançou mais de 4,2 mil unidades em todo o país.

Os altos investimentos da rede de chocolaterias em expansão, e em outras frentes além da abertura de lojas franqueadas, como vendas diretas e entretenimento e lazer, com a aquisição do Playcenter e a abertura de hotéis, fizeram-na desbancar a rede que foi líder absoluta do ranking em todas as edições - O Boticário, que passou a ocupar a vice-liderança.   

Procurada para comentar como a questão afeta o setor de franchising, que faturou R$ 273,08 bilhões em 2024, a ABF enviou o comunicado abaixo:  

Nas últimas semanas, informações e críticas envolvendo redes de franquias têm sido veiculadas pela imprensa e redes sociais e acompanhadas com atenção pela entidade.

A ABF – Associação Brasileira de Franchising considera essencial reafirmar seu compromisso com os princípios que, historicamente, pautam a credibilidade, a ética e o desenvolvimento do franchising nacional.

O setor de franquias no Brasil segue sólido, resiliente e em constante transformação, mas assim como qualquer iniciativa empreendedora implica em riscos para todos os empresários envolvidos, sejam eles franqueados ou franqueadores.

Com mais de 197 mil unidades em operação no País, o franchising representa uma parcela significativa da economia, gerando milhões de empregos diretos e indiretos, promovendo inovação e impulsionando o empreendedorismo estruturado em todos os estados brasileiros.

Os fatos que vieram a público nos últimos dias devem ser analisados com cautela e responsabilidade, pois não refletem a realidade do sistema de franquias como um todo. A ampla maioria das redes franqueadoras e seus franqueados atuam com seriedade, profissionalismo e compromisso com práticas éticas e sustentáveis.

A ABF atua com independência e responsabilidade institucional, sempre em busca das melhores práticas, para fortalecer continuamente o franchising brasileiro, estimulando franqueadores, franqueados e fornecedores, por meio de:

- Promoção da educação e conscientização do setor acerca das práticas contratuais e operacionais;

- Valorização da transparência, do diálogo e da ética empresarial;

- Estruturação de canais de escuta ativa e suporte ao desenvolvimento das redes;

- Estímulo à capacitação constante e ao aprimoramento do ecossistema do franchising.

Além disso, por meio de sua Comissão de Ética, recebe e analisa representações de todos os atores do sistema, aplicando sanções, quando cabíveis, dentro dos limites de sua atuação. Respeitando, ainda, as decisões do Poder Judiciário e dos órgãos arbitrais.

O franchising brasileiro continuará sendo um vetor estratégico para o desenvolvimento do País, promovendo geração de renda, mobilidade social e crescimento econômico sustentável. Franchising íntegro é o nosso compromisso permanente. 

Em comunicado amplamente divulgado pela Cacau Show à imprensa e em seu perfil no Instagram, a marca diz que as publicações são “inverídicas” e os “ataques são injustos” diante da trajetória da empresa. Já os "rituais" seriam uma "vivência sensorial com o líquor (essência) de cacau 100%, uma experiência cultural e gastronômica inclusive em nossos hotéis". Já a "oração de gratidão de fim de ano", um Pai Nosso, é "voluntária e respeita a liberdade de crença." 

O comunicado também destacou que mais de 50% dos franqueados mantêm parceria com a Cacau Show há mais de 7 anos, representados por "um maduro Conselho de Franqueados”.  

"Enfrentamos juntos um aumento de 300% no preço do cacau e até um incêndio em nossa fábrica de Linhares (ES), e mesmo assim seguimos crescendo (...) trabalhando firme, sem segredo e sem mistério. É só trabalho e chocolate, mesmo", conclui a nota. 

 

IMAGEM: DC